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quinta-feira, 5 de março de 2020

As razões do amor - Rubem Alves






Arte by *Amedeo Modigliani*



Os místicos e apaixonados concordam em que o amor não tem razões. Angelus Silésius, místico medieval, disse que ele é como a rosa: “A rosa não tem ‘porquês’. Ela floresce porque floresce.”
Drummond repetiu a mesma coisa no seu poema “as sem-razões do amor”. É possível que ele tenha se inspirado nestes versos mesmo sem nunca os ter lido, pois as coisas do amor circulam com o vento. “Eu te amo porque te amo…” – sem razões… “Não precisas ser amante, e nem sempre saber sê-lo”.
Meu amor independe do que me fazes. Não cresce do que me dás. Se fossem assim ele flutuaria ao sabor dos teus gestos. Teria razões e explicações. Se um dia teus gestos de amante me faltassem, ele morreria como a flor arrancada da terra.
“Amor é estado de graça e com amor não se paga.” Nada mais falso do que o ditado popular que afirma que “amor com amor se paga”. O amor não é regido pela lógica das trocas comerciais. Nada te devo. Nada me deves. Como a rosa floresce, eu te amo porque te amo.
“Amor é dado de graça, é semeado no vento, na cachoeira, no eclipse. Amor foge a dicionários e a regulamentos vários… Amor não se troca… Porque amor é amor a nada, feliz e forte em si mesmo…”
Drummond tinha de estar apaixonado ao escrever estes versos. Só os apaixonados acreditam que o amor seja assim, tão sem razões. Mas eu, talvez por não estar apaixonado (o que é uma pena…), suspeito que o coração tenha regulamentos e dicionários, e Pascal me apoiaria, pois foi ele quem disse que “o coração tem razões que a própria razão desconhece”. Não é que faltem razões ao coração, mas que suas razões estão escritas numa língua que desconhecemos. Destas razões escritas em língua estranha o próprio Drummond tinha conhecimento e se perguntava: “Como decifrar pictogramas de há 10 mil anos se nem sei decifrar minha escrita interior? A verdade essencial é o desconhecido que me habita e a cada amanhecer me dá um soco.” O amor será isto: um soco que o desconhecido me dá?
Ao apaixonado a decifração desta língua está proibida, pois se ele a entender, o amor se irá. Como na história de Barba Azul: se a porta proibida for aberta, a felicidade estará perdida. Foi assim que o paraíso se perdeu: quando o amor – frágil bolha de sabão -, não contente com sua felicidade inconsciente, se deixou morder pelo desejo de saber. O amor não sabia que sua felicidade só pode existir na ignorância das suas razões. Kierkergaard comentava o absurdo de se pedir dos amantes explicações para o seu amor. A esta pergunta eles só possuem uma resposta: o silêncio. Mas que se lhes peça simplesmente falar sobre o seu amor – sem explicar. E eles falarão por dias, sem parar…
Mas – eu já disse – não estou apaixonado. Olho o amor com olhos de suspeita, curiosos. Quero decifrar sua língua desconhecida. Procuro, ao contrário de Drummond, as cem razões do amor…
Vou a Santo Agostinho, em busca de sua sabedoria. Releio as Confissões, texto de um velho que meditava sobre o amor sem estar apaixonado. Possivelmente aí se encontre a análise mais penetrante das razões do amor jamais escritas. E me defronto com a pergunta que nenhum apaixonado poderia jamais fazer: “Que é que eu amo quando amo o meu Deus?” Imaginem que um apaixonado fizesse essa pergunta à sua amada: “Que é que eu amo quando te amo?” Seria, talvez, o fim de uma estória de amor. Pois esta pergunta revela um segredo que nenhum amante pode suportar: que ao amar a amada o amante está amando uma outra coisa que não é ela. Nas palavras de Hermann Hesse, “o que amamos é sempre um símbolo”. Daí, conclui ele, a impossibilidade de fixar o seu amor em qualquer coisa sobre a terra.
Variações sobre a impossível pergunta: Te amo, sim, mas não é bem a ti que eu amo. Amo uma outra coisa misteriosa, que não conheço, mas que me parece ver aflorar no teu rosto. Eu te amo porque no teu corpo um outro objeto se revela. Teu corpo é lagoa encantada onde reflexos nadam como peixes fugidios…Como Narciso, fico diante dele… “No fundo de tua luz marinha nadam meus olhos, à procura…” (Cecília Meireles). Por isto te amo, pelos peixes encantados…
Mas eles são escorregadios, os peixes. Fogem. Escapam. Escondem-se. Zombam de mim. Deslizam entre meus dedos. Eu te abraço para abraçar o que me foge. Ao te possuir alegro-me na ilusão de os possuir. Tu és o lugar onde me encontro com esta outra coisa que, por pura graça, sem razões, desceu sobre ti, como o Vento desceu sobre a Virgem Bendita. Mas, por ser graça, sem razões, da mesma forma como desceu poderá de novo partir. Se isto acontecer deixarei de te amar. E minha busca recomeçará de novo…
Esta é a dor que nenhum apaixonado suporta. A paixão se recusa a saber que o rosto da pessoa amada (presente) apenas sugere o obscuro objeto do desejo (ausente). A pessoa amada é metáfora de uma outra coisa. “O amor começa por uma metáfora”, diz Milan Kundera. “Ou melhor: o amor começa no momento em que uma mulher se inscreve com uma palavra em nossa memória poética.”
Temos agora a chave para compreender as razões do amor: o amor nasce, vive e morre pelo poder – delicado – da imagem poética que o amante pensou ver no rosto da amada…
*Rubem Alves*

sábado, 15 de fevereiro de 2020

Tempo de morrer - Rubem Alves - Eugène Delacroix

Arte by *Eugène Delacroix*



"Eu havia colocado no toca-discos aquele disco com poemas de Vinícius e do Drumond, disco antigo, long-play, o perigo são os riscos que fazem a agulha saltar, felizmente até ali tudo tinha estado liso e bonito, sem pulos e sem chiados, o próprio Vinícius, na sua voz rouca de uísque e fumo, havia recitado os sonetos da separação, da despedida, do amor total, dos olhos da amada.

 Chegara finalmente o último poema, meu favorito, "o haver" - o Vinícius percebia que a noite estava chegando, tratava então de fazer um balanço de tudo o que se fez e disso, o que foi que sobrou? Por isso as estrofes começam todas com uma mesma palavra, "resta..." - foi isso que sobrou. 


Resta essa capacidade de ternura, essa intimidade 
perfeita com o silêncio... 
 Resta essa vontade de chorar diante da beleza, essa cólera cega em 
face da injustiça e do mal entendido...
Resta essa faculdade incoercível de sonhar e essa pequenina luz indecifrável
 a que às vezes os poetas tomam por esperança... 

 Começava naquele momento a última quadra, e de tantas vezes lê-la e outras tantas ouvi-la, eu já sabia de cor as suas palavras, e as ia repetindo dentro de mim, antecipando a última, que seria o fim, sabendo que tudo o que é belo precisa terminar. 

 O pôr-do-sol é belo porque as suas cores são efêmeras, em poucos minutos não mais existirão. A sonata é bela porque sua vida é curta, não dura mais que vinte minutos. Se a sonata fosse uma música sem fim é certo que o seu lugar seria entre os instrumentos de tortura do diabo, no inferno. Até o beijo... Que amante suportaria um beijo que não terminasse nunca? 

 O poema também tinha de morrer para que fosse perfeito, para que fosse belo e para que eu tivesse saudades dele, depois do seu fim. Tudo o que fica perfeito pede para morrer. Depois da morte do poema viria o silêncio, o vazio. Nasceria então outra coisa no seu lugar: a saudade. A saudade só floresce na ausência. 

 É na saudade que nascem os deuses - eles existem para que o amado que se perdeu possa retornar - que a vida seja como o disco, que pode ser tocado quantas vezes se desejar. Os deuses - nenhum amor tenho por eles, em si mesmos. Eu os amo só por isso, pelo seu poder de trazer de volta para que o abraço se repita. Divinos não são os deuses. Divino é o reencontro. 

 A voz de Vinícius já anunciava o fim. Ele passou a falar mais baixo. 


Resta esse diálogo cotidiano com a morte, 
esse fascínio pelo momento a vir, quando, emocionada, 
ela virá me abrir a porta como uma velha amante... 

 E eu, na minha cabeça, automaticamente me adiantei, recitando em silêncio o último verso: ".. Sem saber que é a minha mais nova namorada."

 Foi então que, no último momento, o imprevisto aconteceu: a agulha pulou para trás, talvez tenha achado o poema tão bonito que se recusava a ser uma cúmplice do seu fim, não aceitava a sua morte, e ali ficou a voz morta do Vinícius repetindo palavras sem sentido: "sem saber que é a minha mais nova"..."sem saber que é a minha mais nova"... "sem saber que é a minha mais nova..." 

 Levantei-me do meu lugar, fui até ao toca-discos, e consumei o assassinato: empurrei suavemente o braço com o meu dedo, e ajudei a beleza a morrer, ajudei-a a ficar perfeita. Ela me agradeceu, disse o que precisava dizer, sem saber que é a minha mais nova namorada... Depois disso foi o silêncio. 

 Fiquei pensando se aquilo não era uma parábola para a vida, a vida como uma obra de arte, sonata, poema, coreográfico. Já no primeiro momento quando compositor, ou o poeta ou o dançarino preparam a sua obra, o último momento já está em gestação. É bem possível que o último verso do poema tenha sido o primeiro a ser escrito por Vinícius. A vida é tecida como as teias de aranha: começam sempre do fim. 
Quando a vida começa do fim ela é sempre bela por ser colorida com as cores do crepúsculo. 

 Não, eu não acredito que a vida biológica deva ser preservada a qualquer preço.

 "para todas as coisas há o momento certo. Existe o tempo de nascer e o tempo de morrer" (eclesiastes 3, 1s). 

A vida não é uma coisa biológica. 

A vida é uma entidade estética. Morta a possibilidade de sentir alegria diante do belo, morreu também a vida, tal como Deus no-la deu - ainda que a parafernália dos médicos continue a emitir seus bips e a produzir ziguezagues no vídeo. A vida é como aquela peça. É preciso terminar. A morte é o último acorde que diz: está completo. Tudo o que se completa deseja morrer". 

 *Rubem Alves*

Poema O Haver - Vinicius de Moraes na integra:
https://roselicolaneri.blogspot.com/2012/04/o-haver-vinicius-de-moraes.html

terça-feira, 31 de dezembro de 2019

Hora de esquecer



Arte by *George Grie*




E o que eu desejo para mim e para você é esquecimento…

Coisa estranha de se desejar, parece mais uma maldição – pois quem é tolo de querer perder a memória? Eu mesmo vivo falando sobre a felicidade que mora nas lembranças e até mesmo acho que não está errado dizer que somos o que lembramos. Por isso gosto de contar casos, que é um jeito de fazer amor, dar aos outros pedaços da minha vida que o tempo já matou e enterrou, mas que a maga memória faz ressuscitar. 
Aquilo que a memória amou fica eterno,disse Adélia Prado, e eu não me canso de repetir.
A memória é a presença da eternidade em mim. E é para isso que preciso dos deuses, para que eu nunca esqueça, para que o passado volte sempre…

Recordo as Confissões, de Santo Agostinho. Releio seu maravilhoso capítulo sobre a memória, a meditação mais lúcida e profunda jamais escrita sobre o assunto. Diz ele: Palácio maravilhoso, caverna misteriosa, dentro da memória estão presentes os céus, a terra e o mar… Dentro dela eu me encontro comigo mesmo… É nela que moram os segredos da vida e da morte… E andando pelos seus caminhos, o santo vai à procura do obscuro objeto da nostalgia que faz o seu coração doer, e que beleza alguma é capaz de curar. Ele entra na memória como amante que vai à procura da amada, perdida…

E venho eu e desejo a todos o esquecimento…
É que, por vezes, é preciso esquecer para poder lembrar…


Pois a memória, como o próprio santo notou, é o estômago da mente…. Para ali vão as comidas mais variadas, umas saborosas e de digestão fácil, outras amargas e impossíveis de serem digeridas. Quando isso acontece, o corpo se contorce e enjoa, e coisa alguma é capaz de fazê-lo feliz. Até que o próprio corpo se aplica o remédio, vomita, e assim se livra da comida que o fazia sofrer.
Memória, estômago: há nela coisas que precisam ser vomitadas, para que corpo possa de novo se alegrar. Pois o esquecimento é a memória vomitando o que faz o corpo sofrer.

Por isso que Roland Barthes dizia que é preciso esquecer a fim de ficar sábio.
Por isso que Alberto Caeiro dizia que o que ele desejava era desaprender, raspar de sua pele a maneira de sentir que lhe haviam ensinado, para poder, de novo, sentir o gosto bom de si mesmo.
Somos como um navio em que os detritos do mar vão se grudando, em meio ao muito navegar.
De tempos em tempos é preciso que o casco seja raspado, para voltar de novo a deslizar suave pelas águas.

Os detritos da memória depositam-se em nossos olhos, transformam-se numa nuvem leitosa, opaca, catarata, e nos tornamos cegos para o mundo a nossa volta. O mundo inteiro, então, se transforma num monte de detritos.

É preciso esquecer para poder ver com clareza. 
É preciso esquecer para que os olhos possam ver a beleza.


As Sagradas Escrituras contam a saga da mulher de Ló. Deus permitiu que o casal fugisse das cidades amaldiçoadas de Sodoma e Gomorra sob a condição de que não olhassem para trás, enquanto o fogo do céu as consumia. A mulher não resistiu à curiosidade, olhou para trás, e foi transformada em estátua de sal. 
Quem fica com os olhos fixados no passado se torna incapaz de ver o presente. 
E quem não tem olhos para o presente está morto.

Esquecer. Ver com olhos de criança – sem memória.
Mas nem sei por que estou dizendo todas estas coisas para explicar o meu desejo de esquecimento, quando o que eu quero dizer já foi dito por Alberto Caeiro:
"O essencial é saber ver
uma aprendizagem de desaprender
Saber ver sem estar a pensar
Saber ver quando se vê
Ver com o pasmo essencial que tem uma criança, ao nascer
Sentir-se nascido a cada momento
para a eterna novidade do mundo…"

É isso que desejo para você e para mim, no início de cada ano: esquecimento. 
Tomar um banho. Deixar a água correr pelo corpo… Sentir os detritos do passado se despregando, e entrando pelo ralo. Recuperar o corpo sem memória da criança, para ver o mundo como se fosse a primeira vez…

*Rubem Alves *

quarta-feira, 25 de dezembro de 2019

Natal, a estoria do menininho - Rubem Alves

Art by *Vincent van Gogh*





Minhas netas: o Natal está chegando. Todo mundo fica agitado, é preciso comprar presentes no cartão de crédito, fazer dívidas a serem pagas no outro ano, preparar comilanças... Mas, afinal de contas, por que tanto agito? Eu acho que a maioria se agita sem saber porque. E, se soubessem, não se agitariam... Pois eu vou dizer o que penso do por que do Natal. O Natal é o dia em que se para tudo a fim de se contar e a fim de se ouvir uma estória, a mais bela e a mais simples jamais contada. Todo esse agito por causa de uma estória? É. 

Vocês, que gostam do Harry Potter, fiquem sabendo: a estória do Natal é uma estória do mundo dos mágicos, dos bruxos, das fadas, das varinhas de condão, dos encantamentos. As estórias têm poderes mágicos. Vocês já notaram que, quando a gente ouve uma estória que nos comove, ela entra dentro da gente, faz a gente rir, faz a gente chorar, faz a gente amar, faz a gente ficar com raiva? As estórias dos mundos dos mágicos saltam das páginas dos livros onde estão escritas, entram dentro da gente e se alojam no coração. 

Quando isso acontece a estória fica viva, toma conta do nosso corpo e da nossa alma, e nós passamos a ser parte dela. Pois a estória do Natal faz isso com a gente. Quando vai chegando o Natal eu fico com saudade das músicas antigas de Natal (tem de ser das antigas; as modernas não servem) e começo a folhear meus livros de arte, onde estão as pinturas do presépio. É muito simples: um menininho que nasceu em meio aos bois, vacas, ovelhas, cavalos, jumentos... Era menininho pobre. 

Mas diz a estória que quando ele nasceu aconteceu uma mágica com o mundo: tudo ficou diferente: as árvores se cobriram de vaga-lumes, as estrelas brilharam com um brilho mais forte, e até uns reis deixaram os seus palácios e foram ver o nenezinho. A visão do menininho os transformou: eles largaram suas coroas, jóias e mantos de veludo junto com os bichos, na estrebaria. Quem vê o menininho fica curado de perturbação. Perturbados são os adultos que, ao falar sobre Deus, imaginam um ser muito grande, muito poderoso, muito terrível, ameaçador, sempre a vigiar o que fazemos para castigar. 

Pois o Natal diz que isso é mentira. Porque Deus é uma criancinha. Ele está muito mais próximo de vocês do que dos adultos. E foi essa mesma criancinha que, depois de crescida, disse que para estar com Deus bastava voltar a ser criança. Se os adultos, antes de comprar presentes e preparar ceias, se lembrassem da estória, eles ficariam curados da sua doidice. Na noite do Natal que se aproxima, antes de abrir os presentes, antes de começar a comedoria, peça ao seu pai ou à sua mãe: “Por favor, conte a estória do menininho...“ E, se eles não souberem contar, peça que eles leiam esse poema sobre o Menino Jesus escrito por um poeta que queria ser menino, por nome de Alberto Caeiro.

Num meio-dia de fim de primavera
Tive um sonho como uma fotografia.
Vi Jesus Cristo descer à terra.
Veio pela encosta de um monte
Tornado outra vez menino,
A correr e a rolar-se pela erva
E a arrancar flores para as deitar fora
E a rir de modo a ouvir-se de longe.

Tinha fugido do céu.
Era nosso demais para fingir
De segunda pessoa da Trindade.
No céu era tudo falso, tudo em desacordo
Com flores e árvores e pedras.

Um dia que Deus estava a dormir
E o Espírito Santo andava a voar,
Ele fugiu para o sol
E desceu pelo primeiro raio que apanhou.

Hoje vive na minha aldeia comigo.
É uma criança bonita de riso e natural.
Limpa o nariz ao braço direito,
Chapinha nas poças de água,
Colhe as flores e gosta delas e esquece-as.
Atira pedras aos burros,
Rouba a fruta dos pomares
E foge a chorar e a gritar dos cães.
E, porque sabe que elas não gostam
E que toda a gente acha graça,
Corre atrás das raparigas
Que vão em ranchos pelas estradas
Com as bilhas às cabeças
E levanta-lhes as saias.

A mim ensinou-me tudo.
Ensinou-me a olhar para as cousas.
Aponta-me todas as cousas que há nas flores.
Mostra-me como as pedras são engraçadas
Quando a gente as tem na mão
E olha devagar para elas.

Ele mora comigo na minha casa a meio do outeiro.
Ele é a Eterna Criança, o deus que faltava.
Ele é o humano que é natural,
Ele é o divino que sorri e que brinca.
E por isso é que eu sei com toda a certeza
Que ele é o Menino Jesus verdadeiro.

E a criança tão humana que é divina
É esta minha quotidiana vida de poeta,
E é porque ele anda sempre comigo que eu sou poeta sempre,
E que o meu mínimo olhar
Me enche de sensação,
E o mais pequeno som, seja do que for,
Parece falar comigo.

A Criança Nova que habita onde vivo
Dá-me uma mão a mim
E a outra a tudo que existe
E assim vamos os três pelo caminho que houver.
Saltando e cantando e rindo
E gozando o nosso segredo comum
Que é o de saber por toda a parte
Que não há mistério no mundo
E que tudo vale a pena.

A Criança Eterna acompanha-me sempre.
A direção do meu olhar é o seu dedo apontando.
O meu ouvido atento alegremente a todos os sons
São as cócegas que ele me faz, brincando, nas orelhas.

Damo-nos tão bem um com o outro
Na companhia de tudo
Que nunca pensamos um no outro.
Mas vivemos juntos e dois
Com um acordo íntimo
Como a mão direita e a esquerda.

Ao anoitecer brincamos as cinco pedrinhas
No degrau da porta de casa,
Graves como convém a um deus e a um poeta.
E como se cada pedra
Fosse todo um universo
E fosse por isso um grande perigo para ela
Deixá-la cair no chão.

Depois eu conto-lhe histórias das cousas só dos homens
E ele sorri, porque tudo é incrível.
Ri dos reis e dos que não são reis,
E tem pena de ouvir falar das guerras,
E dos comércios, e dos navios
Que ficam fumo no ar dos altos-mares.
Porque ele sabe que tudo isso falta àquela verdade
Que uma flor tem ao florescer
E que anda com a luz do sol
A variar os montes e os vales.
E a fazer doer aos olhos os muros caiados.

Depois ele adormece e eu deito-o.
Levo-o ao colo para dentro de casa
E deito-o, despindo-o lentamente
E como seguindo um ritual muito limpo
E todo materno até ele estar nu.

Ele dorme dentro da minha alma
E às vezes acorda de noite
E brinca com os meus sonhos.
Vira uns de pernas para o ar,
Põe uns em cima dos outros
E bate as palmas sozinho
Sorrindo para o meu sono.

Quando eu morrer, filhinho,
Seja eu a criança, o mais pequeno.
Pega-me tu ao colo
E leva-me para dentro da tua casa.
Despe o meu ser cansado e humano
E deita-me na tua cama.
E conta-me histórias, caso eu acorde,
Para eu tornar a adormecer.
E dá-me sonhos teus para eu brincar
Até que nasça qualquer dia
Que tu sabes qual é.

Esta é a história do meu Menino Jesus.
Por que razão que se perceba
Não há de ser ela mais verdadeira
Que tudo quanto os filósofos pensam
E tudo quanto as religiões ensinam?

*Rubem Alves*

quarta-feira, 18 de dezembro de 2019

Saber sofrer...


Art by *Tomasz Alen Kopera*





Saber sofrer é uma lição difícil de aprender.
Se o terrível nos golpeia e não sofremos, algo está errado.

Tenho inveja das plantas e dos animais. Parecem-me tão tranquilos, possuidores de uma sabedoria que nós não temos. Como se desfrutassem da felicidade do Paraíso. Sofrem, pois não existe vida sem sofrimento. Mas sofrem sempre como se deve, quando o sofrimento vem, na hora certa, e não por antecipação. Saber sofrer é uma lição difícil de aprender.
Se terrível golpe nos golpeia e não sofremos, algo está errado. Pois como não chorar, se o destino nos faz sangrar?

Se não choramos é porque o coração está doente, perdeu a capacidade de sentir. Mas sofrer fora de hora é doença também, permitir-se ser cortado por golpes que ainda não aconteceram e que só existem como fantasmas da imaginação.

Os animais sabem sofrer.

Nós não.

Somos prisioneiros da ansiedade.

Pois ansiedade é isto: sofrer fora de hora, por um golpe que, por enquanto, só existe no futuro que imaginamos.


*Rubem Alves*

domingo, 15 de dezembro de 2019

Os trinta e três nomes de Deus

By *Justyna Kopania* 



 Os trinta e três nomes de Deus


De vez em quando perguntam-me se acredito em Deus. Mas é claro. Acredito mais que a maioria das pessoas. Tenho até trinta e três nomes para ele. Esses nomes foi a Margueritte Yourcenar que me contou. Ela foi uma escritora maravilhosa, autora do livro Memórias de Adriano, quem lê nunca mais esquece, quer ler de novo. Pois esses são os trinta e três nomes de Deus que ela me ensinou.

É só falar o nome, ver na imaginação o que o nome diz, para que a alma se encha de uma alegria que só pode ser um pedaço de Deus… Mas é preciso ler bem devagarinho…

1.Mar da manhã.
2.Barulho da fonte nos rochedos sobre as paredes de pedra.
3.Vento do mar de noite, numa ilha…
4.Abelha.
 5.Vôo triangular dos cisnes.
6. Cordeirinho recém-nascido….
7.Mugido doce da vaca, mugido selvagem do touro.
8.Mugido paciente do boi.
9. Fogo vermelho no fogão.
10.Capim.
11.Perfume do capim.
12.Passarinho no céu.
13.Terra boa…
14.Garça que esperou toda a noite, meio gelada, e que vai matar sua fome no nascer do sol.
15. Peixinho que agoniza no papo da garça.
16. Mão que entra em contato com as coisas.
17.A pele, toda a superfície do corpo
18. O olhar e tudo o que ele olha.
19.As nove portas da percepção.
20.O torso humano.
21.O som de uma viola e de uma flauta indígena.
22.Um gole de uma bebida fria ou quente.
23.Pão.
24.As flores que saem da terra na primavera.
 25.Sono na cama.
26. Um cego que canta e uma criança enferma.
27. Cavalo correndo livre.
28.A cadela e os cãezinhos.
 29.Sol nascente sobre um lago gelado.
30.O relâmpago silencioso.
31. O trovão que estronda.
 32.O silêncio entre dois amigos.
33.A voz que vem do leste, entra pela orelha direita e ensina uma canção…”

Agradeço ao Carlos Brandão por haver me apresentado os trinta e três nomes de Deus da Margueritte. Não é preciso que sejam os seus. Faça a sua própria lista. Eu incluiria: 

Ouvir a sonata Apassionata de Beethoven. 
Sapos coaxando no charco. 
O canto do sabiá.
 Banho de cachoeira. 
A tela “Mulher lendo uma carta”, de Vermeer.
 O sorriso de uma criança. 
O sorriso de um velho.
 Balançar num balanço tocando com o pé as folhas da árvore…
 Morder uma jabuticaba…

Todas essas coisas são os pedaços de Deus que conheço…

Sim, acredito muito em Deus.
*Rubem Alves*

domingo, 12 de abril de 2015

O Outono - Rubem Alves - O agora - Rose Colaneri

Art by Hopare



O agora...

Quem pensa que tem todo o tempo do mundo vive maya intensamente. Nada esta em nossas mãos, nem o tempo nem a vida...
Nada espera por nós, não ha garantias de nada, nem da  primavera, nem do outono, nem do momento certo para fazer aquilo que deve ser feito. 

Nada nos espera!

Carpe Diem!

Hoje!

Agora!

Se preciso for reajuste suas velas. Em qualquer estacão da vida há muitos recomeços. Tente, tente mais uma vez. Nem todos os mares são bravos, nem todos os ventos são fortes demais...Se está no outono da vida viva a calmaria do crepúsculo  que só os sensíveis sabem aproveitar!  Só os sensíveis...

Seja forte, serena(o). Mantenha a esperança. Nunca  pise em ninguém, não magoe pessoas, não machuque corações,   não engane   e
não permita que te enganem, que te roubem o brilho do olhar...

Não permita que suas marcas na vida alheia sejam de dor, desamor...
Conserte seus erros hoje pois  pode não haver mais tempo.
As pessoas com quem errou podem não estar mais vivas!

O tempo não conserta tudo, pelo contrário...ele piora tudo!

Viva como se não houvesse amanhã, pois pode não haver mesmo.
Reconheça a fragilidade da vida e do momento...bolhas de sabão...

Não perca seu tempo com coisas e pessoas que não  fazem  vc sorrir.

A lei da vida  é: colhemos o que  plantamos!
Valorize seus sentimentos, voe alto, mas saiba aterrizar com firmeza.

Não permaneça em relações sem amor,  é a maior hipocrisia que existe.
Cultive relações verdadeiras, não se engane com mundo virtual onde todos são felizes e poderosos.
Olhos nos olhos é muito importante - Saiba ver a honestidade e a verdade neles.

Se não querem estar ao seu lado espontaneamente, se te ignoram ou te abandonam...não te amam, isso é sempre certo!
Quem ama sempre, sempre estará ao teu lado, mesmo que esteja com problemas também.

Não alimente relacionamentos com pessoas egoístas, elas sempre nos machucam...
Os egoístas acabam suas vidas  sozinhos, nunca seja um!

Não alimente qualquer tipo de preconceito, isso corrompe sua alma.
Jamais abandone a racionalidade, muito menos as emoções do coração.
Cuide de seus sentimentos... cuide para não ferir o coração de ninguém.

O mundo dá voltas...
E pode não haver tempo para consertar algumas falhas.
O peso disso atrasa sua vida!
Pode não haver tempo para viver momentos únicos com pessoas únicas...

Ame  e faça o que tem que ser feito como se não houvesse amanhã...

Porque não há...não há!

Carpe Diem!

Rose Colaneri


Do meu, para sempre amado, Rubem Alves...


O Outono


Foi-se, finalmente, o verão, não sem antes, fazer algumas grosserias e malcriações: trovejou, relampejou, choveu, inundou. Não queria ir embora. Compreendo. Queria ficar para ver e namorar o outono, que é muito mais bonito que ele. Verão, quarentão: recusava-se a aceitar os sinais da passagem do tempo. Não queria dizer adeus. Gostaria de ficar. A vida é tão boa! Mas o tempo é implacável. O Sol disse que a hora do seu adeus havia chegado. Foi se inclinando no céu, suas viagens cada vez mais curtas, as noites mais longas, o crepúsculo chegando mais cedo, as manhãs chegando mais tarde. O vento antes convidava a que se tirasse a camisa. Agora ele causa arrepios e chama os agasalhos das gavetas onde dormiam. O céu fica mais azul. Deve ter sido numa tarde de outono que os Beatles compuseram aquela balada que canta:

"...because the Sky is blue it makes me cry...” 

E o verde das plantas fica mais verde. O Verão é inquieto. Tudo nele convida a sair e a agir. O Outono é tranqüilo, introspectivo, convida ao recolhimento e à meditação. É um convite ao pensamento.

Gosto especialmente das suas tardes. O verão é a estação do meio-dia. O outono vive mais ao sol que se põe. E como são belos os dois, O Outono e as tardes. Há uma pitada de tristeza misturada no ar. “O que é bonito enche os olhos de lágrimas”, diz a Adélia. Os dois se parecem porque os dois estão cheios de adeus.

A tarde

... é este ssossego do céu
com suas nuvens paralelas
e uma última cor penetrando nas árvores
até os pássaros.
É esta curva dos pombos, rente aos telhados,
este cantar de galos e rolas, muito longe;
e, mais longe, o abrolhar de estrelas brancas,
ainda sem luz...

Na cidade onde eu vivi, no interior de Minas, ao crepúsculo se tocava a Ave Maria, e era como se toda a natureza parasse e rezasse. Eu gostava de ficar olhando para as árvores: havia uma imobilidade absoluta no ar. Nem um único tremor perturbava a tranquilidade pensativa das folhas. E as nuvens ao poente se coloriam de verde claro, passando pelos, amarelos, laranjas, e vermelhos, até o roxo, que se preparava para desaparecer na escuridão. Tudo belo. Tudo triste. E pensamos pensamentos diferentes daqueles de durante o dia. 

Para Wordsworth,
as nuvens que se ajuntam ao redor do sol que se põe
ganham seu colorido triste
de olhos que têm atentamente
observado a mortalidade dos homens
.

O crepúsculo e o Outono nos fazem retornar à nossa verdade. Dizem o que somos. Metaforas de nós mesmos, eles nos fazem lembrar que somos seres crepusculares, outonais. Também somos belos e tristes... Como o Verão quarentão também nós não queremos partir... 

Paul Bouget nos diz:

Quando, ao sol que se põe, os rios ficam cor de rosa
e um leve tremor percorre os campos de trigo,
parece das coisas surgir uma suplica de felicidade
que sobe até o coração perturbado.
Uma súplica de degustar o encanto de se estar no mundo
enquanto se é jovem e a noite é bela.
Pois nós vamos,
como se vai esta onda:
Ela, para o mar,
nós para a sepultura.


Quem quer que pare para ouvir as vozes do Outono e da tarde perceberá que, dentro da sua beleza, nos falam a nossa vida e a nossa morte. Nada de mórbido. Só podem viver bem aqueles que aprendem a sabedoria que a morte ensina.
Foi assim que o professor de literatura, no filme A sociedade dos poetas mortos, iniciou o aprendizado dos seus alunos. Vocês se lembram?

 Levou-os até uma fotografia onde se encontravam, imobilizadas sobre o papel, pessoas. Agora todas estavam mortas. 

Também nós, um dia. 

A lição da poesia é que é preciso contemplar o crepúsculo no horizonte para se sentir a beleza incomparável do momento... Cada momento é único. Não há tempo para brincadeiras. Carpe diem: colha o dia, como algo que nunca mais se repetirá, como quem colhe o crepúsculo, “antes que se quebre a corrente de prata, e se despedace a taça de ouro...” Beba cada momento até as últimas gotas. É preciso olhar para o Abismo face a face, para se compreender que o Outono já chegou e que a tarde já começou. Cada momento é crepuscular. Cada momento é outonal. Sua beleza anuncia seu iminente mergulho no horizonte.

Quando o sol está a pino estas ideias não nos perturbam. Tudo parece estar bem. Há muito tempo ainda. As rotinas do trabalho ocultam a nossa verdade. Mas elas não podem impedir nem que a tarde chegue, com suas cores de adeus, e nem que o outono chegue, anunciando a proximidade do Inverno. E eles nos forçam a ter pensamentos diferentes, pensamentos de solidão. São mestres silenciosos. Se prestarmos atenção e ouvirmos o que nos dizem, ficaremos sábios. Porque sabedoria é isto: contemplar o abismo, sem ser destruído por ele. Nas palavras de Rilke, “conter a morte inteira, docemente, sem nos tornar amargos”.

 *Rubem Alves*


 Porque sabedoria é isto: 
contemplar o abismo, sem ser 
destruído por ele...

 “conter a morte inteira, docemente, sem nos tornar amargos".

Namaste!