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sábado, 15 de fevereiro de 2020

Tempo de morrer - Rubem Alves - Eugène Delacroix

Arte by *Eugène Delacroix*



"Eu havia colocado no toca-discos aquele disco com poemas de Vinícius e do Drumond, disco antigo, long-play, o perigo são os riscos que fazem a agulha saltar, felizmente até ali tudo tinha estado liso e bonito, sem pulos e sem chiados, o próprio Vinícius, na sua voz rouca de uísque e fumo, havia recitado os sonetos da separação, da despedida, do amor total, dos olhos da amada.

 Chegara finalmente o último poema, meu favorito, "o haver" - o Vinícius percebia que a noite estava chegando, tratava então de fazer um balanço de tudo o que se fez e disso, o que foi que sobrou? Por isso as estrofes começam todas com uma mesma palavra, "resta..." - foi isso que sobrou. 


Resta essa capacidade de ternura, essa intimidade 
perfeita com o silêncio... 
 Resta essa vontade de chorar diante da beleza, essa cólera cega em 
face da injustiça e do mal entendido...
Resta essa faculdade incoercível de sonhar e essa pequenina luz indecifrável
 a que às vezes os poetas tomam por esperança... 

 Começava naquele momento a última quadra, e de tantas vezes lê-la e outras tantas ouvi-la, eu já sabia de cor as suas palavras, e as ia repetindo dentro de mim, antecipando a última, que seria o fim, sabendo que tudo o que é belo precisa terminar. 

 O pôr-do-sol é belo porque as suas cores são efêmeras, em poucos minutos não mais existirão. A sonata é bela porque sua vida é curta, não dura mais que vinte minutos. Se a sonata fosse uma música sem fim é certo que o seu lugar seria entre os instrumentos de tortura do diabo, no inferno. Até o beijo... Que amante suportaria um beijo que não terminasse nunca? 

 O poema também tinha de morrer para que fosse perfeito, para que fosse belo e para que eu tivesse saudades dele, depois do seu fim. Tudo o que fica perfeito pede para morrer. Depois da morte do poema viria o silêncio, o vazio. Nasceria então outra coisa no seu lugar: a saudade. A saudade só floresce na ausência. 

 É na saudade que nascem os deuses - eles existem para que o amado que se perdeu possa retornar - que a vida seja como o disco, que pode ser tocado quantas vezes se desejar. Os deuses - nenhum amor tenho por eles, em si mesmos. Eu os amo só por isso, pelo seu poder de trazer de volta para que o abraço se repita. Divinos não são os deuses. Divino é o reencontro. 

 A voz de Vinícius já anunciava o fim. Ele passou a falar mais baixo. 


Resta esse diálogo cotidiano com a morte, 
esse fascínio pelo momento a vir, quando, emocionada, 
ela virá me abrir a porta como uma velha amante... 

 E eu, na minha cabeça, automaticamente me adiantei, recitando em silêncio o último verso: ".. Sem saber que é a minha mais nova namorada."

 Foi então que, no último momento, o imprevisto aconteceu: a agulha pulou para trás, talvez tenha achado o poema tão bonito que se recusava a ser uma cúmplice do seu fim, não aceitava a sua morte, e ali ficou a voz morta do Vinícius repetindo palavras sem sentido: "sem saber que é a minha mais nova"..."sem saber que é a minha mais nova"... "sem saber que é a minha mais nova..." 

 Levantei-me do meu lugar, fui até ao toca-discos, e consumei o assassinato: empurrei suavemente o braço com o meu dedo, e ajudei a beleza a morrer, ajudei-a a ficar perfeita. Ela me agradeceu, disse o que precisava dizer, sem saber que é a minha mais nova namorada... Depois disso foi o silêncio. 

 Fiquei pensando se aquilo não era uma parábola para a vida, a vida como uma obra de arte, sonata, poema, coreográfico. Já no primeiro momento quando compositor, ou o poeta ou o dançarino preparam a sua obra, o último momento já está em gestação. É bem possível que o último verso do poema tenha sido o primeiro a ser escrito por Vinícius. A vida é tecida como as teias de aranha: começam sempre do fim. 
Quando a vida começa do fim ela é sempre bela por ser colorida com as cores do crepúsculo. 

 Não, eu não acredito que a vida biológica deva ser preservada a qualquer preço.

 "para todas as coisas há o momento certo. Existe o tempo de nascer e o tempo de morrer" (eclesiastes 3, 1s). 

A vida não é uma coisa biológica. 

A vida é uma entidade estética. Morta a possibilidade de sentir alegria diante do belo, morreu também a vida, tal como Deus no-la deu - ainda que a parafernália dos médicos continue a emitir seus bips e a produzir ziguezagues no vídeo. A vida é como aquela peça. É preciso terminar. A morte é o último acorde que diz: está completo. Tudo o que se completa deseja morrer". 

 *Rubem Alves*

Poema O Haver - Vinicius de Moraes na integra:
https://roselicolaneri.blogspot.com/2012/04/o-haver-vinicius-de-moraes.html