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terça-feira, 31 de dezembro de 2019

Hora de esquecer



Arte by *George Grie*




E o que eu desejo para mim e para você é esquecimento…

Coisa estranha de se desejar, parece mais uma maldição – pois quem é tolo de querer perder a memória? Eu mesmo vivo falando sobre a felicidade que mora nas lembranças e até mesmo acho que não está errado dizer que somos o que lembramos. Por isso gosto de contar casos, que é um jeito de fazer amor, dar aos outros pedaços da minha vida que o tempo já matou e enterrou, mas que a maga memória faz ressuscitar. 
Aquilo que a memória amou fica eterno,disse Adélia Prado, e eu não me canso de repetir.
A memória é a presença da eternidade em mim. E é para isso que preciso dos deuses, para que eu nunca esqueça, para que o passado volte sempre…

Recordo as Confissões, de Santo Agostinho. Releio seu maravilhoso capítulo sobre a memória, a meditação mais lúcida e profunda jamais escrita sobre o assunto. Diz ele: Palácio maravilhoso, caverna misteriosa, dentro da memória estão presentes os céus, a terra e o mar… Dentro dela eu me encontro comigo mesmo… É nela que moram os segredos da vida e da morte… E andando pelos seus caminhos, o santo vai à procura do obscuro objeto da nostalgia que faz o seu coração doer, e que beleza alguma é capaz de curar. Ele entra na memória como amante que vai à procura da amada, perdida…

E venho eu e desejo a todos o esquecimento…
É que, por vezes, é preciso esquecer para poder lembrar…


Pois a memória, como o próprio santo notou, é o estômago da mente…. Para ali vão as comidas mais variadas, umas saborosas e de digestão fácil, outras amargas e impossíveis de serem digeridas. Quando isso acontece, o corpo se contorce e enjoa, e coisa alguma é capaz de fazê-lo feliz. Até que o próprio corpo se aplica o remédio, vomita, e assim se livra da comida que o fazia sofrer.
Memória, estômago: há nela coisas que precisam ser vomitadas, para que corpo possa de novo se alegrar. Pois o esquecimento é a memória vomitando o que faz o corpo sofrer.

Por isso que Roland Barthes dizia que é preciso esquecer a fim de ficar sábio.
Por isso que Alberto Caeiro dizia que o que ele desejava era desaprender, raspar de sua pele a maneira de sentir que lhe haviam ensinado, para poder, de novo, sentir o gosto bom de si mesmo.
Somos como um navio em que os detritos do mar vão se grudando, em meio ao muito navegar.
De tempos em tempos é preciso que o casco seja raspado, para voltar de novo a deslizar suave pelas águas.

Os detritos da memória depositam-se em nossos olhos, transformam-se numa nuvem leitosa, opaca, catarata, e nos tornamos cegos para o mundo a nossa volta. O mundo inteiro, então, se transforma num monte de detritos.

É preciso esquecer para poder ver com clareza. 
É preciso esquecer para que os olhos possam ver a beleza.


As Sagradas Escrituras contam a saga da mulher de Ló. Deus permitiu que o casal fugisse das cidades amaldiçoadas de Sodoma e Gomorra sob a condição de que não olhassem para trás, enquanto o fogo do céu as consumia. A mulher não resistiu à curiosidade, olhou para trás, e foi transformada em estátua de sal. 
Quem fica com os olhos fixados no passado se torna incapaz de ver o presente. 
E quem não tem olhos para o presente está morto.

Esquecer. Ver com olhos de criança – sem memória.
Mas nem sei por que estou dizendo todas estas coisas para explicar o meu desejo de esquecimento, quando o que eu quero dizer já foi dito por Alberto Caeiro:
"O essencial é saber ver
uma aprendizagem de desaprender
Saber ver sem estar a pensar
Saber ver quando se vê
Ver com o pasmo essencial que tem uma criança, ao nascer
Sentir-se nascido a cada momento
para a eterna novidade do mundo…"

É isso que desejo para você e para mim, no início de cada ano: esquecimento. 
Tomar um banho. Deixar a água correr pelo corpo… Sentir os detritos do passado se despregando, e entrando pelo ralo. Recuperar o corpo sem memória da criança, para ver o mundo como se fosse a primeira vez…

*Rubem Alves *